Não é comum olhar para trás e ver-me invadido pela consciência de que o deveria ter feito de outra maneira. Por um lado (e pelo outro também) é-me difícil girar a cabeça
num ângulo superior a noventa e três graus. Aos noventa e quatro tenho dores e
aos noventa e cinco já arrisco um torcicolo. Depois, consciência é algo que não
me costuma invadir (nem consciência nem outras badalhoquices, fique desde já o
leitor sabendo). Porém, à medida que seguia a sua doutrina e me evadia rapidamente, não pude deixar de pensar que isto não
poderia voltar a acontecer. A história, caro leitor, conta-se em duas penadas:
Eu, o Pacheco, o Fonseca e o Borges fazíamos um grupo inseparável. Daqueles, iguais a tantos outros, que se formam na infância e perduram durante a vida. Juntávamo-nos todos
os dias para umas golfadas de tinto e umas mãos de sueca (chama-se Ingrid e as
suas massagens são de ir aos céus). Aos sábados dávamos catequese e, aos
domingos, após a missa, dedicávamo-nos a acções de solidariedade –
solidarizávamo-nos uns com os outros e fazíamos uns palmanços, actuando sobre
superfícies comerciais. Foi há cerca de um ano que vestimos os nossos fatos de
tartaruga e nos encontrámos todos à porta da Worten do Vasco da Gama. Quero
dizer... encontrámo-nos todos menos o Borges. Esperámos pacientemente e já
passava meia-hora da hora combinada quando o vimos chegar no seu fato de
tubarão. De imediato, ao vê-lo naquela figura, ferveu-nos o sangue (o que é
notável quando estamos a falar de tartarugas) e partimos-lhe a cabeça,
ralhando-lhe, em surdina, que assim não podia ser, que o fato de tubarão era
para assaltos ao Continente, que ali dava muito nas vistas, que era uma bizarria e as pessoas iam
estranhar. Equacionámos cancelar tudo mas o Borges defendeu-se, justificou que
o seu fato de tartaruga ainda estava na lavandaria e só estaria pronto dali a duas
horas, que não valia a pena ficar ali a assar tanto tempo à espera. Apoiou-se na
abordagem furtiva que um tubarão sempre consegue, que ninguém daria por ele,
que era uma alteração insignificante relativamente ao plano inicial e que tudo
correria pelo melhor. Acabámos por, resignados, sucumbir aos seus argumentos e
ao calor que já nos fazia suar em bica dentro das fatiotas. Entrámos na loja e
de imediato nos dirigimos ao nosso objectivo: as máquinas de café. Carregámos
as carapaças com o que podíamos e o Borges, à falta de carapaça, enfiou uma
máquina na barbatana dorsal. Ao ver aquilo soube de imediato que a coisa não ia
correr bem. Com a máquina lá dentro, a barbatana assemelhava-se à bossa de um
camelo e, ao contrário de tartarugas e mesmo tubarões, camelos são coisas pouco
comuns e que dão nas vistas em lojas de electrodomésticos. Ainda estava a
produzir este raciocínio e já ouvia o segurança aos gritos, de passo acelerado,
a dirigir-se a nós. A vantagem do fato de tartaruga é o elemento surpresa. Quando
se espera um andar vagaroso, ver tartarugas a fugir a todo o gás torna-se
surpreendente para a generalidade das pessoas, deixando-as atónitas e pregadas
ao chão perante o fenómeno. O mesmo efeito não conseguiu causar o Borges no seu
fato de tubarão. A estreiteza da cauda atabalhoava-lhe os movimentos, acabando
mesmo por tropeçar nas barbatanas e estatelar-se aos pés da menina da caixa.
Hoje, devido ao seu improviso, o Borges já não dá catequese aos sábados, não
vai à missa aos domingos e ao invés de copos e sueca, preocupa-se antes com a
sua cueca, que aqueles marmanjos que com ele partilham a cela insistem em
tentar tirar.
Voltei a lembrar-me
desta triste história quando vi a segunda parte do jogo entre o Sporting e o
Rio Ave. Quando decidiu alterar o plano inicial, Sá Pinto fez-me lembrar o
Borges. Substituiu o processo habitual pelo improviso e, tal como o Borges,
deu-se mal. Concordo com a ideia de jogo do Sá e é fundamental que ele se mantenha
fiel à mesma. Ainda que a situação se revele complicada, o melhor caminho para
o sucesso é mantermo-nos fiéis ao plano que traçámos, para mais quando tem tudo
para dar certo (concordará o leitor que o golpe, só com tartarugas, era infalível). Sá Pinto ainda goza
de crédito. Ainda bem. Mas é importante que não o desbarate
com decisões erráticas em momentos de aperto. Caso o faça, tal como o Borges,
ver-se-á em risco de sodomização. Não por companheiros de cela, mas pela fúria
dos adeptos.
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